quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Texto: FRIO por Roberto Rodrigues

FRIO
*Roberto Rodrigues

Fazia muito frio naquele fim de tarde de julho, completamente fora dos padrões da região. Muito frio. Ele tinha ouvido no rádio que poderia gear na madrugada seguinte e estava preocupado. Depois de anos de preços baixos, contas que não fechavam, uma dureza sem tamanho, finalmente as coisas estavam melhorando. Os preços do café tinham reagido, tomara coragem e recepara todo o cafezal em setembro passado. A plantação já tinha passado dos 10 anos, mas era bem instalada, variedade adequada, sempre bem tratada, embora com sacrifícios. Fizera a poda com orientação do bom engenheiro agrônomo da cooperativa e a brotação fora um sucesso, as árvores estavam esbanjando vigor. Andava muito feliz com a expectativa de safra boa no próximo ano, promessa certa com as plantas tão bem preparadas.
            Mas agora, ante a possibilidade de uma geada, estava ansioso. Percorrera toda a fazenda preparando as defesas possíveis, colocando pneus velhos para queimar em pontos estratégicos, além de tambores cheios de serragem: a fumaça ajudaria a minimizar os efeitos do frio intenso. Era uma prática usual nos locais onde as geadas eram mais comuns.
            Ficou um tempo ali no terraço da casa da sede, crepúsculo magnífico, o horizonte vermelho contra o qual se recortavam as imagens das árvores que ele conhecia tão bem. “Rosso di sera, bel tempo si spera”, dizia a mãe, filha de imigrantes italianos, “vermelho de tarde, bom tempo virá”. Que tempo bom, pensava, se poderia gear?
            Os anos de penúria haviam acabado com tudo. Até a mulher o deixara, não suportando mais as dificuldades financeiras por tanto tempo. “Em casa que falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”, pensava, sofrendo, mas entendendo a mulher.
            Ficou ali, matutando, os 3 fox paulistinhas tiritando de frio aos seus pés, olhando para ele com aquele olhar de pedintes, suplicando por calor.
            E pensou nestes últimos anos em que penara sem calor nenhum, sozinho, sobrevivendo no limite das próprias forças, sem sair da fazenda, a não ser para negociar as dívidas.
            Quando a mulher o deixara, dissera uma frase dura: ”você se casou com a agricultura, não posso competir com ela, é uma rival muito poderosa; você a adora, só pensa nela, só cuida dela, vive para ela, não tem lugar para mim nos seus sentimentos”. De fato, pensava agora, a gente se casa com um pé de café quando o planta. Não é como uma cultura anual, também maravilhosa, como a soja, o milho, o algodão, que a gente planta, trata, colhe e vende em 6 ou 8 meses; a gente se casa com o cafezal por 20, 25 anos, fica ligado a ele por laços emocionais, e não apenas materiais. Cada safra, exagerava, era um novo filho dele com a plantação.  E, dali do terraço, coração acelerado enquanto a noite caía devagar, ficou olhando com carinho o cafezal brotado, verde, sumindo aos poucos na escuridão... Nem uma brisa soprava, o ar parado, um silêncio monumental assombrando a natureza.
            Foi deitar bem tarde; sabia, porque assim diziam os antigos, que é preciso ficar de olho no termômetro: se a temperatura cair 1 grau por hora, é geada na certa. Fazia 12 graus às 7 da noite. E à meia noite já estava em 6 graus: caíu mais de 1 grau por hora.
            Entrou na cama gelada, depois de deixar os cachorros dormirem na cozinha, com o restinho do calor do fogão de lenha, e não pregou o olho. Lembrou-se da tragédia narrada por Monteiro Lobato em “Negrinha”, no conto “O drama da geada”. Pulou da cama às 3 da madrugada, fazia 4 graus, saíu a pé e foi acender todas as preparações dos pneus e dos barris, pela roça inteirinha.
            Feito isso, voltou para a cama, enregelado, pressentindo uma desgraça. O frio queimava suas esperanças. O breu da noite, mau conselheiro, o atormentava. Agüentou firme o que pode, mas logo se levantou, tomou um café quente...
            Quando as primeiras luzes da madrugada o permitiram, viu o véu branco da morte cobrindo toda a plantação...
E morreu também, um pouco, por dentro...






* Coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior de Agronegócio da FIESP e professor de Economia Rural da UNESP/Jaboticabal
Folha de São Paulo - 16/07/2011 - FRIO

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